ANA, mãe da criatura

Por Lucas Castor em 17/2/25

 

Os corpos chegam em mesas separadas. Para facilitar o trabalho, arrastamos uma para perto da outra. As rodinhas deslizam pelo chão de granito da sala branca. Ficamos no meio. Puxamos a luva e ligamos a lanterna de cabeça. Olhamos para o primeiro.

Está vivo, mexe-se, canta. Tomamos um susto com a voz. Procuramos um dublador na sala, num gesto automático. É dele mesmo. Uma voz antiga num corpo novo. Pede que o soltemos, pois tem um show marcado às dezoito horas, outro às vinte e duas, em cidades a duzentos quilômetros uma da outra. Oferecemos uma solução alcóolica, ele nega. Apelamos para o formol. Ele dorme. Tiramos o boné, o relógio, a pulseira. As botas e as meias. As calças e a boxer. A jaqueta, o cordão fino de ouro. A camiseta. Tem poucos, mas fundos cortes. Enfiamos o dedo num deles, tateamos. Está na carne. Da pele ao osso, ele amou. O rasgo tem as características de um ferimento autoinfligido. Há sinais de reaberturas frequentes, de dentro para dentro. Da dor ele sente falta. Com cuidado, injetamos a resina que servirá de molde. Uma réplica da estrutura é suficiente e o homem tem compromisso.

Olhamos para o segundo. Morto há seis anos, é virado e revirado no forno de tempos em tempos. Descalçamos os sapatos e as meias. Tiramos as calças e a samba-canção, o paletó, a gravata, a camisa. Na carne tão rasgada, encontramos o vinco do tipo que procuramos. A faca teve a mão de TJ, o que não fez da ferida menos ferida. Um corte, se conseguido, é um corte. Este é um superficial, consequência de outro maior, causado em outrem. Existe para dizer que aqui também há um corte. Um pedido de perdão. Esprememos e deixamos escorrer o caldo, que reservamos.

Olhamos para um e para o outro. Aproximamos mais as mesas, nos esprememos no meio. Despidos, parecem-se. Não precisamos mais deles. JG é levado de volta para o forno da cultura, JG freta um jato. A metamorfose é óbvia, os homens sofrem do mesmo mal. Injetamos o caldo no molde. Desligamos a lanterna, tiramos a luva. A sala brilha.

Somos ANA, a no a, o palíndromo do começo. Mãe da criatura.

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