Black Decker no lugar da lua

Por Lucas Castor em 10/2/25

 

Imagina que o século virou há três anos. Há três anos você viu os aviões na TV e aprendeu a palavra terrorismo. Você já assinava, ou decidiu que era a hora de assinar, uma revista sobre culinária. Você come e gosta de comer, você bebe e gosta de beber. Você consome uma quantidade de bens que, se todo o mundo vivesse como você, precisaríamos de cinco planetas Terra. Você não entende por que chamam o México de América Latina, se a América é a América, americana ao máximo onde você nasceu. Você quer deixar essa revista numa diagonal da sua mesa de centro, lustrada por uma latina, enquanto acerta um hole in one no campo de  Mar-a-Lago, após quinhentas tentativas.

Ou não. Talvez você queira justamente comer menos, e melhor. Saber de onde vem a comida. Usar palavras sofisticadas na próxima visita do seu grupo de leitura de Faulkner a um restaurante de fusão asiática. Você quer chamar o chef e dizer que o rolinho de salmão finlandês com patê de trufa branca estava… correto. Ou cochichar para aquela amiga que cita trechos de cor de O som e a fúria que o okonomiyaki hoje estava esponjoso demais. Ela vai ficar com a cara no chão, a otária.

Você se decidiu. Ligou para a GOURMET do telefone fixo, da sala onde fica a mesinha de centro, com seus calcanhares ressecados, arruinando a limpeza de Maria. Você forneceu os dados do cartão de crédito. No mês seguinte, agosto de 2004, chegou a edição de verão da GOURMET. Você olhou para o pote de geleia caseira de frutas vermelhas na capa e se sentiu doce e imortal. Consistente e imoral. Essa geleia é você. Você vai fervê-la e se dissolver no caldo violeta e profundo. Mas você abre as páginas. Você não estava preparado para o artigo Consider The Lobster, de um tal de David Foster Wallace.

Ele começa bem. As duas fotos que ilustram a capa são divertidas. Um homem de costas, com roupas brancas e boné, na camiseta dele escrito LOBSTER COOKER, sua mão afundada numa panela invisível de onde sai fumaça o suficiente pra deixar suas roupas, aqui na Flórida, a mil e seiscentas milhas do Maine, com cheiro de lagosta. A foto ao lado é a de uma garotinha fantasiada de lagosta, com olhinhos, garrinhas, tentáculos e tudo. Muito vermelha contra um céu exageradamente azulado pelo filtro de uma câmera analógica, ela sorri.

O articulista começa bem. Descreve o enorme Festival de Lagosta do Maine como você esperava. Há dados sobre a geografia e a economia da região, sobre a importância do Festival para a cultura local. Você esperava ler isso. Você esperava e ainda assim se maravilha com a menção aos doze mil quilos de lagosta consumidos na tenda principal do evento, todo ano. Pronto, você tem mais um tópico para se mostrar mais interessante do que a Senhora Faulkner de Cor.

Ele continua bem. Você não imaginava que um crítico gastronômico, pois você só pode pensar que esse tal de David F não sei o que é um crítico gastronômico, você não imaginava que ele pudesse tratar de algo tão banal com profundidade e humor. Em silêncio, você o elogia. Eis um cara que se dedicou ao trabalho que lhe foi designado. Como você.

Mas ali pela metade do artigo, algo começa a quebrar.

Você lê, Então há uma questão que é tudo menos inevitável no Maior Fogão de Lagosta do Mundo, e que pode surgir nas cozinhas pelos Estados Unidos: é aceitável ferver viva uma criatura sensitiva apenas para satisfazer nosso paladar?

Você acha que leu errado. Você relê, é aceitável ferver viva uma criatura sensitiva apenas para satisfazer nosso paladar?

Talvez tenha sido só um deslize.

A seguir Foster Wallace relata o depoimento de um figurão da região com quem dividiu um táxi. O ricaço conta a impressão mais vívida do festival, ele diz, você tem que ficar numa fila por um tempo horrivelmente longo para conseguir suas lagostas, e enquanto isso há toda essa garotada hippie indo e vindo pela fila, entregando panfletos que dizem que as lagostas morrem sentindo uma dor terrível, portanto você não deveria come-las.

Pronto, é mais ou menos pra isso que você assinou a revista. Você também quer se divertir.

Só que algo volta a se mexer na panela.

Você não esperava o seguinte trecho: O córtex cerebral humano é a parte do cérebro que lida com faculdades elevadas como razão, autoconsciência metafísica, linguagem, etc. Receptores de dor são conhecidos por serem parte de um sistema bem mais antigo e primitivo de nociceptores e prostaglandinas, que são coordenados pelo tronco cerebral e pelo tálamo.

Quê? Você grita e bate os calcanhares na mesinha. A Maria pergunta, tá tudo bem, seu John? E você responde, Quê?

Por qualquer motivo que não consegue elaborar, você continua a ler.

Você lê Wallace, Devo acrescentar que me parece improvável que muitos leitores da GOURMET gostariam de pensar com profundidade sobre isso, ou serem questionados acerca da moralidade de seus hábitos alimentares nas páginas de um periódico culinário. Como, no entanto, a matéria atribuída a este artigo é a experiência de visitar o Festival de Lagosta do Maine de 2003, e portanto passar vários dias no meio de uma grande massa de americanos se fartando de lagostas, e portanto estar mais ou menos impelido a pensar profundamente sobre lagostas e a experiência de comprar e comer lagostas, sucede que não existe maneira honesta de evitar certas questões morais.

É sério isso? Você já está conversando em voz alta com um texto que responde de volta, de dentro de uma panela em ebulição. Você pede à Maria que lhe sirva uma taça de rosé.

Seu estômago não estava preparado para o processo padrão de cozimento da lagosta na casa das pessoas, em oposição ao consumo no festival ou num restaurante. David Fuck Wallace ousa contar, O cenário básico é que nós chegamos da loja e fazemos nossas pequenas preparações, como pegar a panela, enchê-la de água e colocar para ferver, e então tiramos as lagostas da sacola ou da embalagem em que vieram… e é quando algumas coisas desconfortáveis começam a acontecer. Ainda que mareada pela viagem até a casa, por exemplo, a lagosta tende a entrar em estado de alerta, quando mergulhada na água fervente. Se você estiver virando-a de uma embalagem dura para a panela, a lagosta eventualmente tentará se agarrar aos lados da embalagem, ou até pinçar suas garras nas bordas da panela, como uma pessoa tentando evitar cair da beira de um telhado. E o pior é quando a lagosta está totalmente imersa. Mesmo que você cubra a panela e vá embora, você geralmente poderá ouvir a tampa batendo e chacoalhando, enquanto a lagosta tenta empurrá-la. Ou as garras da criatura arranhando as laterais da panela enquanto ela convulsiona. A lagosta, em outras palavras, comporta-se bastante como eu ou você nos comportaríamos, se fôssemos afundados em água fervente (com a óbvia exceção da gritaria).

Wallace foi enviado a campo para escrever um artigo de quinze páginas, em uma revista de prestígio no meio culinário, e gastou metade delas falando sobre a ética do sofrimento animal. E não é que o autor fosse um grande defensor dos direitos dos animais. Ele confessa que nunca tinha pensando seriamente sobre o tema até escrever sobre o Festival da Lagosta do Maine. Eu acho que a genialidade do cara foi pegar um ponto controverso para ele, pros editores e pros leitores e a este ponto dedicar a carne macia do seu artigo. Sem cair no simples ativismo (não que ferver criaturas vivas não valha um ativismo bem direto, mas por que a revista publicaria um manifesto contra o consumo de lagostas?). Wallace, apesar de descrever friamente os processos de fervura do bicho, deixa ao longo do texto pedacinhos de humor que funcionam como um quebra-molas na paixão dos tradicionais textos-manifesto, o que torna o fato de a gente rir da covardice que é fritar a lagosta viva algo ainda mais cruel e incômodo. Ele nos aproxima do Complexo de Portnoy, sentimos culpa depois de gozar. Como a boa literatura, causa incômodo.

Com razão você se pergunta, e essa é uma questão que tá sempre no plano de fundo de nossos computadores, na profundeza do córtex da Selvageria, você se pergunta, o que faz desse artigo um exemplo de literatura experimental? Ao meu ver é sobretudo o deslocamento no espaço. É como se você saísse à noite na varanda, depois de tomar um drink, depois do trabalho, depois de mais um dia, você sai à noite na varanda e procura no céu o conforto da lua… pelo menos uma minguante, vai. Um sorriso no alto. Mas contra a noite limpa você se depara com uma, digamos, sanduicheira da Black Decker. Flutuando no espaço, brilhando um plástico que imita metal onde devia brilhar a lua. O artigo do David Foster Wallace está no lugar que não lhe foi destinado. Não é bem o conteúdo, não é bem a forma. É o espaço. Não está correto.

Alerta: os trechos do artigo do Wallace foram traduzidos livre e porcamente por mim. Leiam o original

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