Joaquim Otávio - treescritura de algo selvagem

11/05/25

 

1. 

à tarde quente nos mata a mente, nós dois derretendo à beira do rio, a zoada das abelhas escalando o tronco nos ouvidos, o sol de quarenta para as cinco graus, a cabeça fervilhante e sem sair fumaça, eu vivia tudo isso de cara limpa enquanto o picareta picava sua flor, os dedos compridos reduziam lentamente a erva que exalava seu perfume, era belo o mato naquela esquina do rio, finalmente hoje rolou o salve com ele, salvo que ele parecia meio tenso, uma careta de ira e uma palavra gasgada querendo soltar, mas esse engasgo nem longo durou e ele desembestou a contar aquela história insólita, maior neura, ele começou cuspindo marimbondo sobre um lance osso de morte, contou que os cana estiveram bem ali mesmo, dando bacu no riacho, pegaram dois meninos que estavam fumando um na paz, e depois, o que houve? me perguntou como se fosse minha a história, tô sabendo que foi sinistro, e aí é foda, né? eu que ando com essa flor flagrante na bolsa, me disse mostrando a erva criminosa ao meu olho bem comprido, eu louco para provar daquela materialidade, queimar aquelas provas, mas ele só tagarelava enraivado da cegueira moral do caralho de dizer que erva é coisa de marginal, criminalizar cria o crime, cria, marginalizaram a erva e fizeram dela monopólio de um cartel armado para encher os cana de açúcar, adoçando pastores e ministérios públicos, um grande pacto mamando lactos nas tetas da cannabis e da gente preta que se ferra na política dos genocidas, criminalizaram uma medicina ancestral, esse chá bravo que em qualquer sol brota - ele jogava as sementes de sua flor na margem do rio e eu refletia se aquela semente brotaria antes ou depois dele terminar de bolar - ele maldizia os efeitos colaterais das bigue farma, o colapso da saúde capitalista e eu pensava seriamente que ele e eu, o um e o outro, nós dois ambos estávamos mesmo éramos muito sedentos de erva, finda a labuta, enfim férias, um calor de danar o juízo do jovem e ele não terminava de bolar aquele um, eu doido para dar um dois com ele tem tempo, e olha aqui nós dois, um par de vasos abstinentes, mas ele só no papo, no seu discurso panfletário baseado no que ele não acabava de enrolar, defendeu o uso do THC contra o Parkinson, o efeito dos terpenos fragrantes, tudo isso criminalizado pelas legislações racistas dos colonizadores, coronéis e carolas, dessa podre caterva taxando a erva de selvagem - segundo ele, os colonizadores tinham horror à palavra selvagem - esses escroques, os que matam a mata e cobrem os rios doces de minério estéril, o maior medo deles é a sativa, sabem que ela guarda a semente de um desadestrar da mente, desde o desbunde eles piram com essa ideia, sabia? os destros temem porque ela transmuta igual o idioma, eu olhava sua língua e pensava em quão vigoroso era aquele músculo que aguentava tanto texto, eu de ouvir me inquietava, até que enfim escuto o faiscar dos fósforos, finalmente ia fazer da erva fumo e vi que ele puxou dela bem fundo do seu diafragma feroz, foi por aí que tudo começou, por volta dessa hora, mas quem começou com aquela história torta foi ele - é importante o registro -  ele falando dos dois meninos que levaram um bacu no rio.  

 

2. 

a mata quente transpirava à beira d’água, eu de olho nele vi como inspirava em seus pulmões a planta virada em brasa, seu rosto brasil, ele prendeu uns segundos e soltou do fundo do peito as palavras fumegantes:

 

a relva é volátil

o vegetal evapora e flutua ao sabor do vento, a brisa da planta refrigera

- ele sabia o gosto na boca -

pela narina as flores eólicas mergulham até as aŕvores dos alvéolos, éolo e alvéolo na mais fina membrana, ali o verde dissolve, nas paredes permeáveis, perde as margens em afluentes muito vascularizados

vira outro rio que nasce nas copas das veias

o vapor dissolve nos vasos sanguíneos, seiva-sangue na carótida é bombeada até o crânio, e lá, creia

 - jurou pela mais pia máter -

irriga o cérebro em cada um dos seus veios, água o gramado dos neurônios em impulsos elétricos

 - o corpo elétrico, vejo em seus olhos incendiários o fogo da babilônia -

a erva faz brotar um jardim no hipocampo neural e deixa o sangue no lento, as sístoles espaçadas, o tempo se espalha e a erva vira corrente eletrizante de cognições selvagens, essa é a metamorfose que opera na língua, nos seus fios tensos, a erva perde as margens na mente, a língua perde as margens na erva.

 

eu via que ele vivia uma brisa forte quando me passou a bola, e foi então que ele me revelou o seu desejo de morte:

-       você me chamou para tomar banho no igarapé, e eu achei bonito… igarapé.

  

3. 

espraiados na devesa, à sombra verde dos angicos contornado o céu, na margem fluida do rio, acocorado ele pensava na seiva cada vez mais feroz, dizia:

os selvagens são os que fumam ervas, e os civilizados os que queimam as matas, onde já se viu?

rio,

eu digo que um salve salva a mata das queimadas, parece paradoxal queimar erva contra os piromaníacos, ele sorria, mas a flor tira as margens da mente, as estruturas perdem as cercas, as que colonizam mente e língua

 

ele mergulhou fundo em meus olhos ao perguntar sobre o igarapé:

-são jerônimo, eu disse, mas os mais velhos chamam de upuaçu

- ipiaçu?

- isso, ypyaçú, na verdade

- upiaçu?

- ypyassú, isso

- o piá suíço! - ria -  eu adoro essa abobrinha, disse, não a lorota sonora em si, mas a operação dos originários no idioma, sabe? por isso salvo mesmo, salve salve a selva e as ervas, as raízes do verbo, o desdém aos selvagens é papo de colonizador, saca? papo de quem padece de cosmofobia, o gosto por margens é coisa de modernos, marginalizam a flora, esses que acusam originários de primitivos, separam-se em frágeis fortes muito concretos, andam perdidinhos em caminhos retos, temem se afogar no igarapé, eu salvo o verbo do nego bispo pois sou mais chegado ao caipira, que tem raiz no tronco tupi, os que carpem a terra, brotar essa árvore é tipo matar o português com tukanos, devolver ao rio o nome de outrora, são jerônimo vive muito longe, sem papas a gente arranca o seu batistério, chamá-lo de ygarapé ypyaçu, imagina?

 

 

ele suspirou bem fundo aquele instante e compartilhou comigo o mistério que havia no nome dos elementos em guarani:

 

- em guarani a água é y, e a terra em guarani é yvy, vês?  o vê se instala entre as águas, notas? o vê represa as águas, vê as margens entre as águas de y, vês como elas aterram?

 

eu já era acostumado com ele ser bem palestrinha, mas nessa tarde sua idéia transpirava, sempre voltando no papo insólito da morte e dos meninos que dissolveram, um argumento sombrio de que a erva aos poucos mataria as palavras brancas que nos aprisionam, nada de destro em demasia, desejava cultivar algo mais sinistro, sonhava em entrar na mata e matar o estigma, estigmata, matar o selvagem da língua e reduzir a palavra à selvageria final - fazê-la kopira - deixá-la mais próxima da relva e dos seus vapores, fazê-la bem puranga, passar o ramo na espinhela do vernáculo, só existe casa, ora selvas, não existe selva, céus, isso é uma questão de português e tragando os vapores ele dizia que a erva só era marginalizada porque fazia a mente apagar as margens, desmaginalizava - parece contradição, eu sei, e eu falo tanto da erva porque é preciso desmarginalizá-la, a ela e a llíngua -  e explicava a smarginatura como um banho no rio, aliás, não no rio, no pará, em y, porquê a essência é y - y cuando a relva vira seiva, cuando a língua liquefaz, cuando dissolve nos alvéolos para árbores vizinhas, ela se move, caminha como os rios, eu rio, e ele me convida a um mergulho em sua loucura: é só assim que há piracema, é assim que o cabra chapa, a mente comungando do aroma, dos perfumes, pelo fumo mesmo, só que em outra língua, dizia, a palavra vira outra ainda que ela diga a mesma coisa, e vice-versa, relva é volátil, afinal, sua voz abafada puxando fumo discursava com bravura: matar o português é só uma ideia que fumamos juntos até a piteira, agora ela tá na mente! 

 

ele levantou-se e me convidou a entrar na água, no igarapé, no pará y dizia que y a nadar nú como os piá nadam no sul, que piaba! ele me estendeu a mão e me convidou a ir fundo no rio, até que perdêssemos nossas margens, nós como peixes, experimenta… eu ia pirá, me chamou bem assim: vem banhar comigo no igarapé, e eu ia fazer o quê?

é a solução.

 

4,

[certa hora ele fez o ritmo entre o tempo e espaço, na língua híbrida os dois eram um só, ary ypy, se eu escutasse agora, eu veria, quer ver? escuta:

ágora, agora, ágora, agora, agora ágora, agora agora, ágora agora

ora era hora, outrora hera, flora

agora era ágora, logo era agora,

está ouvindo, perguntou, a margem dissolvendo?

a chave é a raiz e o ritmo da palavra, o território é gráfico e fônico, o tempo é a palavra em ação e o seu        longo passado acumulado, os dois são um só emaranhado dinâmico.]

 

eu já cansado de lero-lero

o ideal é recomeçar a história desse dia quente com nós dois plantados como relva, horizontais ao sol, planos como a pedra lisa de beira de riacho, chapados, bem chapados, e ornados de briófitas, os rizóides brotando da brisa, ele fica de pé e eu observo seu corpo envolto na marafa, o orvalho escorrendo pela pele, ele transpira e eu começo a ir com ele, pirar a língua como ele queria, pirarucu, benditos alvéolos, me comendo até os neurônios, ele falava demais, eu nem entendia quando acabava um assunto e o outro começava, mas quando ele me convidou a virar rio eu já estava no papo, ele desmaginalizava a língua no regato, o tempo dissolvendo na ressaca, enquanto ele fumava os meus olhos dissimulados miravam seus oblíquos, minha boca buscava vapores na sua, ele passava a baba no beque para não jacarezar e também eu babava quando ele me dava bola, mas mais que em seus lábios, eu pirava era em sua língua, que a cada trago ficava mais primitiva.

  

5.

 o sol cortando o jaraguá dourado, um cheiro de chá volátil como vinagre, um odorico doce e acre, odorico paraguassu, eu olhando os seus contornos enquanto ele insistia para que perdêssemos as margens no igarapé, a ideia de virar rio com ele me deixou bem animista, ouvia ele aguar o híbrido no português ou via brotar o enxerto da mata nativa, e se os cana sempre buscando cannabis, eu logo dava um pito no seu cachimbo, nos lábios a língua feito cobra em chamas, dos dentes gritava o boitatá, tatá é fogo como o de uma pira, mas pirá é peixe enquanto cobra é boi, olha que jiboia a língua do kopira, padê e pirá dão bom pirão e por aí não para, a parola é vária e piena di smarginatura, por latino vai deixando-se capenga o tuga, tupi or not tupi, tramando uma língua n’outra ele soprava sussuaranas no pé do meu ouvido, sua lenga-lenga tinha um dengo, eu já desconfiava que ele era híbrido, como eu, cortava para os dois lados, como o rio, eu rio alto e aos poucos ia em sua onda, a gramática sinfônica dos piá pirado, no curso das águas, nós piranhas feras, presa afiada e sangue na guelra, vocifero sem as margens e a língua em doida desrepresa enchente ubíqua da ave mordiscando até o caroço o policarpo das pitangueiras sob o palrar de araras rubras em desasossego catatau no rugido de maracajá com riso sapeca eu ka´i na sua arapuca capeta fiz-me capim de capivara fora a flora na certa a catuaba soprando a brisa em cada sílaba da mata labareda formigando nossa carne suculenta de curumim ao baque do bacu e ele sabiá que a liamba palavra a mente sobre tudo aquela estrenha e desconforta no sol o seu discurso nascente de indiretas medonhas inté rogar de joelhos:

- haverálgo entrelinhas?

eu não sentia se era sério ou mero barulho das sirenas, pois se ele algo, logo logo era alga no solo do rio, em suma, o sumaré de tudo que ele dizia de ambíguo era certo e sertanejo como a luz do dia

- pode buscar na rede que de erva eu entendo!

e mirando o meu olho d'água em seu rumo eu sentia bem no fundo que por detrás de suas palavras havia um rio imenso e sem beiras onde estávamos nós dois meninos.


Esse texto é uma apologia fundamentada no conceito da desmarginalização, utilizado como catalisador de uma reflexão sobre a cannabis sativa, colonialidades, linguagem e modernismo. A reescritura é utilizada como técnica a partir de uma crescente experimental a cada bloco textual. Transitando da tensão ao tesão, o discurso trabalha aspectos como sonoridade, ambiguidade, multirreferencialidade e metalinguagem, fazendo alusão a pensadores como Nego Bispo, Izaque João, Elena Ferrante e Bruno Latour.


Natural de Poços de Caldas, Joaquim Otávio é bacharel em Relações Internacionais, especialista em Gestão Cultural e mestrando em Sociedade, Desenvolvimento e Cooperação Internacional pela Universidade de Brasília. Atualmente trabalha na Assessoria Especial de Assuntos Internacionais do Ministério da Cultura. Como produtor cultural atuou em festivais de cinema, teatro e literatura e coordenou circulações internacionais em países da América Latina, Europa e África. Amante das letras, dedica-se ao estudo de idiomas e ao consumo incessante de obras literárias.

Siga o autor no Instagram: @joaquimoitavo


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