Eu me lembro

por Maíra Valério, Aurora Milanez, Jonas Paskauskas e Augusto. edição de Lucas Castor

 

Eu me lembro de girar a chave do chuveiro e derrubar a luz do prédio inteiro.

Eu me lembro do sanduíche na Água Mineral enrolado em papel alumínio, o gosto ordinário e inesquecível de sardinha, catchup e maionese em uma alquimia que nunca consegui reproduzir porque nunca tive nem coragem de tentar, todos comendo ao redor da piscina, observando, de longe, um grupo de menores infratores, vigiados, cerceados, mas em um dia de lazer.

Eu me lembro de quando comecei a tomar antidepressivos

Eu me lembro dos dentes trincando

Eu me lembro quando.

Eu me lembro da quadra quente durante a tarde, da expectativa de ouvir meu nome, da raiva de uma bordoada inesperada, dos tênis falsificados prontamente observados pelos colegas, das chamadas de trote invadindo o espaço da madrugada

Eu me lembro daquele círculo de mulheres olhando no espelhinho.

Eu me lembro de São Paulo

Eu me lembro do Marcos dançando sem parar em uma festa na casa de alguém, sem preocupação com hora de acordar no dia seguinte, somente com a possibilidade de algum desodorante dando sopa na bolsa de alguém — ele ostentava a maior alegria e o pior cecê do mundo.

Eu me lembro de você, mas às vezes preferia não lembrar

Eu me lembro do bolo na escola, parabéns coletivo, o gosto engordurado de cobertura feita com margarina — e minha frustração, como amante de bolos, em comer um bolo ruim.

Eu me lembro de.

Eu me lembro.

Eu me lembro da primeira vez que vi o Caio.

Eu me lembro da dolantina, do meu coração acelerar e da paz que senti entrando pela veia

Eu me lembro das coisas a partir do que comi como se fossem migalhas no caminho da Chapéuzinho Vermelho.

Eu me lembro da primeira vez que senti essa dor

Eu me lembro de quando finquei os pés no cimento fresco na chácara que morávamos com a minha mãe.

Eu me lembro da injeção que minha mãe aplicou pra diminuir minha dor

Eu me lembro do calor, da umidade sufocante, da curiosidade das meninas, da puberdade fazendo a curva, da massagem durante a aula, dos dedos inesperadamente chupados, das festas em lobbies e áreas cercadas de concreto, do vento, do rio, do pôr-do-sol.

Eu me lembro de uma pedra que não saía de mim


Paul Auster diz ter sido um dos poucos livros verdadeiramente originais que leu. Joe Brainard escreveu I Remember em 1970. Joe começou com eu me lembro e em seguida entregou a caneta à memória. O livro logo se tornou um ícone da literatura experimental. É um fluxo de consciência relativamente ordenado numa lista infinita de lembranças curtas, algumas um pouco mais longas, mas nenhuma pretensiosa do todo. I remember rompe com o cânone literário das memórias e inaugura um novo gênero.

Eu me lembro é o exercício com o qual inicio a oficina de escrita experimental. Como se fazia polichinelos antigamente, e agora giram-se os braços, um para um lado, outro para o outro, eu me lembro é um trabalho de aquecimento. Acionamos a memória, driblamos a marcação da consciência e nos damos conta de que somos máquinas de escrever.

O texto acima é uma combinação coletiva de memórias individuais de quatro escritores - Maíra Valério, Aurora Milanez, Jonas Paskauskas e Augusto. Como editor, busquei uma sequência que me pareceu faiscante. Fascinadamente única e compartilhada. Respeitei a pontuação dos autores pois, como bem sabemos, presença ou ausência de um ponto final numa frase significam muito

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