Clara S. - que burro
A partir do poema Kebur, de Nelson Medina, apresentado juntamente com a tradução em português em A Poesia Crioula Bissau-Guineense, de Hildo Honório do Couto.
12/8/25
cu: não manjas, prenho de fome
cor-sangue atingido de dor
nenhum-nenhum para
no dia de amanhã
não aparentar cu fé
na seta de mar cor-sangue
para matar flamas
no tomar de larvas ao não casar-se
no fazer de chuva
na seta, se nu
mudo
Para ti, criado na boca
para no fim medir régua de valor
aonde não aparenta
aos que quebram
aos que burros dizem aos
que aparentam amanhã
Que burro
Cu não monges prenha de fome
cor sangue tingido de dor
na nenhum-nenhum p’a no dia de amanhã
no parenta cu fé
No seta mar cor sangue
p’a mata flamas
no toma larvas de no casar-se
no faz-se chuva
no seta se nu mudo
para tiago queria ano na boca
para no pudim régua no valor
aonde no parenta
aos no quebra
que burro diz aos
e para parenta amanhã
Kebur
Ku no mons preña di fomi
korson kingitidu di dur
na ñeñu-ñeñu pa no dia di amaña
no paranta ku fe
No seta mara korson
pa mata flemas
no toma larmas di no kasabi
no fasi tchuba
no seta sedu mudu
pa iagu kirianu na boka
pa no pudi regua no balur
aonti no paranta
aos no kebra
kebur di aos
i pa paranta amaña
Colheita
Com as mãos cheias de fome
o coração enrijecido de dor
lutamos pelo amanhã
plantamos fé
fechamos o coração
para acabar com o torpor
tiramos lágrimas de nossos sofrimento
produzimos chuva
ficamos mudos
para dar água na boca
para regar nosso valor
ontem plantamos
hoje colhemos
colheita de hoje
para plantar amanhã
Movo-me em terreno movediço. Parti do poema Kebur, de Nelson Medina, em crioulo da Guiné Bissau. Procurei uma tradução sonora. Não obstante, com os fonemas, palavras e sotaque de português de Portugal, mesmo esta versão distancia-se muito da sonoridade crioula. Não me parece que faça juz à sonoridade original.
Avancei na distorção até encontrar alguns laivos de insinuação de sentido. Chego a lugares inesperados e que por vias travessas se ligam com o poema original. Coloquei as várias variações do poema em sequência, terminando com a tradução portuguesa em função do sentido. Creio que é uma leitura da intraduzibilidade.
Clara S. é o pseudónimo literário de Ana Pedrosa (Porto, 1980). Arquiteta formada pela Universidade do Porto, a sua prática criativa passa pela escrita, problematização da vivência do espaço comum, pela gestão cultural e pela dança contemporânea. Entre outros, tem contos publicados na antologia A Leitora (Universidade de Coimbra, 2024) e nas revistas Farpa e Pacto. É coautora de Realismo Mágico (Rádio Manobras, 2017), Manobras no Porto: que cidade é esta, que cidade pode ser esta?(Município do Porto, 2013) e autora de On the Ambivalent Peripheral Condition of Historic Porto (Myrdle Court Press, 2010) e Arquitetura: estudos e possibilidades de transversalidades (Universidade do Porto, 2008).