Rita Andrade - Viagem

23/3/25

 

O quê que importa mais, como se começa ou como se acaba?

Aviso já, leitor, que este texto começa numa paragem e acaba na outra. A viagem faz-se de autocarro, tire o passe do bolso. Agora volte a guardar, ainda não chegou o 6.

Está vento, escondo o nariz por trás do cachecol. O banco cinzento está livre, não há mais ninguém na paragem. Sente-se comigo. Deixe que o metal frio e duro molde o seu corpo quente. O céu está escuro, mas não me parece que vá chover. Sinta-se à vontade para achar que vai chover, não quero ser uma narradora autoritária. Dirijo o olhar para o outro lado da estrada, vejo uma paragem idêntica. Está vazia. Está vazia? Não, há uma mulher encostada à placa de publicidade. Tem óculos redondos e cabelo grisalho encaracolado, segura um vaso cor-de-laranja com flores brancas. É a vizinha. Acena e sorri. Diz alguma coisa mas eu não consigo perceber, está demasiado longe. Atravesse a rua, leitor, faça-me esse favor. Junto dela, note as rugas nos cantos da boca, na ponta dos olhos. Olhe-a nos olhos. Sorria de volta.

Demore-se nesse momento, lembre-se da sua avó. Não é bonita?

As flores que segura são tulipas. Imagino campos holandeses e moinhos. Imagina também? Agora volte para o banco cinzento, o autocarro pode chegar a qualquer momento. Cuidado com os carros, passam carros nesta rua, isso não deixo ao seu critério. Este texto é obrigado a cumprir as normas de segurança. Deixe-os passar. Um camião vermelho. Uma motorizada antiga. O carro dos seus pais. Agora pode atravessar.

Volto a olhar para a vizinha, já não sorri. Tem o olhar voltado para as flores brancas. São tulipas? Campos holandeses. E o quê que ela dizia? Não sabe? Leitor, tinha uma função. Deixe lá, volte a sentar-se comigo. O banco está frio e duro, não se esqueça que o banco está frio e duro. Olho para os nós dos meus dedos, vermelhos. Tenho as mãos geladas. O vento bate-me nos olhos e despenteia-me o cabelo, incomoda-me. Será que o autocarro demora muito? É nesse momento que aparece o 6. Sabe bem ser narradora.

Rápido, leitor, faça sinal ao motorista, tire o passe do bolso. Ele para. Abre a porta. Cumprimento o condutor, ele não diz bom dia de volta. Não o acha triste? Encosto o cartão à máquina, o som é-me tão familiar. Costuma andar de autocarro? Sento-me num banco à janela. Sente-se comigo, mais uma vez. Sinta a diferença entre este banco e o outro. É quente, mais confortável, mas ainda um pouco duro.

Espere.

Sinta o assento.

O autocarro arranca, a vizinha fica para trás. Vejo casas com jardins na frente, o céu continua escuro, um homem fuma um cigarro, carros, laranjeiras, um supermercado. Se quiser continue a olhar para a paisagem, eu estou farta dela como estou farta de acordar sempre com a mesma cara. Tiro o livro da mochila. Devotion, Patti Smith. Agora somos dois leitores. Sei finalmente o que sente. De repente estou em Paris. Também está em Paris? Não, fique comigo, não venha connosco. Vejo Patti Smith a escrever no comboio. Tambéma vê? Oh não, não quero. Quero um momento de privacidade com ela, olhe a paisagem. Mais um supermercado, casas, uma horta pequena. Volto discretamente ao livro.

Um homem interrompe-me. Está sentado no banco da frente, ao lado da esposa. Usa uma boina e uma camisola de lã no tom escuro do céu, olhos divertidos. Fala-me com simpatia. Pergunta se está bom o livro. Digo que sim. Ele diz que não gosta de ler, gosta de escrever. Diz que se pudesse passava dias inteiros a escrever. Invejo-o imediatamente. Pergunto-lhe o que escreve. Ele responde

Oh menino.

A mulher dá-lhe uma cotovelada.

É uma menina.

Eu escrevo o que me vier à cabeça.

Depois amasso tudo e deito ao lixo.

Diz isto com imensa satisfação. Eu sorrio e tiro o bloco de notas do bolso. Transcrevo-o com letra turva, à pressa, como se as palavras fossem fugir. E é nesta frase que começa este texto, leitor, há duas semanas. Parece-me que um texto raramente começa no primeiro parágrafo, não concorda? Volto a abrir o livro.

Na maioria das vezes, a alquimia que dá origem a um poema ou a um texto de ficção está inscrita na própria obra, quando não mesmo enraizada nos tortuosos e recônditos lugares da mente. (...) Posso analisar o como, mas não o porquê de ter escrito o que escrevi (Devotion, p.43).

Não sei se faz assim tanta diferença, leitor, se o texto vai parar ao lixo ou a uma paragem de autocarro. Mas o facto é que chegamos ao nosso destino.

As portas abrem, coloco um pé na rua. Sinto o vento na cara, as mãos geladas. Escondo novamente o nariz por trás do cachecol.

 


O exercício

Na obra Devotion (2017), Patti Smith reflete sobre o seu processo criativo. Começa por descrever uma viagem a Paris. Regista pessoas, objetos e acontecimentos em que repara especialmente nesta viagem. Depois escreve uma história onde entrelaça estes elementos da vida real com outros inventados num enredo totalmente fictício.

Identifiquei-me.

Tenho sempre um porquê na cabeça - porquê que alguém escreve? Quando ouvi a confissão do escritor para o lixo (no sábado, antes de ir para o trabalho) já sabia que tinha de escrever sobre ele. Escrevi-o de vários ângulos, não me satisfazia. Depois deixei-me contagiar - o que notei mais nesse dia? O céu escuro, a vizinha, o excerto de Devotion.

Talvez não se saiba porquê (e isso é inquietante) mas estas pequenas pistas sobre o como são reconfortantes. Agradecimento eterno a Patti Smith.

Voltando à palavra proibida:

Porquê que o chamei para a conversa, leitor?

Não inventei o leitor ativo, o génio Ítalo Calvino (Se numa Noite de Inverno um Viajante, 1979) faz isso muito melhor do que eu. E não é sempre o leitor uma parte da história? Ele está sempre lá, escondido a ver o que se passa. O que quis fazer neste texto (e é por isso que ele é experimental, creio) foi tirar o leitor de trás do arbusto. Sentá-lo ao meu lado. Não finja que não está aí. Isto é tudo na sua cabeça, já não é na minha.

Resta-me agradecer pela participação.

Se não estivéssemos na Era Digital pediria para arrancar a folha, amassá-la bem amassada e deitá-la ao lixo. Infelizmente já não há espaço para dramas desse tipo. Carregue lá na cruzinha com vontade e siga a sua vida.


Rita Andrade tem 23 anos e é natural de Santa Maria da Feira. Depois de uma licenciatura em Filosofia chegou à conclusão que não ia chegar a uma resposta. Então matriculou-se no Mestrado em Escrita Criativa, que frequenta atualmente. É na tentativa falhada de chegar a lado nenhum que escreve.

Siga a autora no Instagram: @ritandrad.e


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