Sem armação

Por Cris Oliveira em 13/2/25

 

Foi o oftalmologista quem me fez ver que na verdade ainda posso viver sem óculos e que o que tenho é: apego, medo, apego ao medo como coisa invariável

a essência do ser glorioso se agarra ao que for preciso para permanecer, medo medonho de envelhecer, quer fingir que não sabe que está em ruínas, que vai murchando conforme algoguém vai movendo o cursor, aqui abro um parênteses, pois rolar o cursor seria uma tradução literal de scroll; cursor por si só já traz o significado de algo que se movimenta ao longo de algo, que corre, em curso de, fecho o tal parênteses, da linha do tempo, aquele gráfico que se estende pra direita, sempre pra direita, nem para baixo nem pra cima nem pro outro lado →

como seria se fosse pra cima me pergunto

um medo ocidental e ancestral de estar velha agora e depois, e ficar assim mais velha e mais velha, de não saber o que fazer com meu corpo, como vesti-lo, manejá-lo, despi-lo, olhá-lo e oferecê-lo, com ênfase na ênclise, ele o corpo que é o mesmo corpo mas hormonalmente em reconstrução, outro dia acordei com o jeito exato de explicar e esqueci

a aproximação ao fim é pintada de horripilante pela sociedade etari$ta, e não há imagem possível da velhice física, pessoal e intransferível pra acalmar fígados inflamados, nem

nenhuma possibilidade de prever ou demonstrar as sensações e dores e cataratas, muito operáveis hoje em dia, apenas sinais de avalanche, e que o depois está muito perto e o depois do depois a gente só vai mesmo poder ver depois, um marco agora, um marco mais tarde, e assim marco por marco por marco por marco,

há alguns já definidos que funcionam

como sedativos (recurso paliativo ou recreativo) pra corações selvagens, vide os inúmeros áudios enviados pra zamiga; sabe-se mais sobre o corpo da mulher desde que começamos a olhar para mulheres com olhos de mulheres na liderança, então é possível agora conhecer os fatos sem precisar ignorá-los nem guardar segredo: 

 

●      meu cabelo não cair / cair

●      quereres minguantes

●      querelas constantes

●      rogar muitas pragas

●      pesadelos rupestres

●      realidade aumentada

●      cansaço incompreendido

●      não saber que fim leva a audácia

●      não saber quem leva a leveza

●      não saber

●      T de torpores aleatórios maiúsculo ativado

 

no consultório pude ver os detalhes dos dedos do oculista pousados no aparato com lentes que vendam e desvendam, ajeitando ajustes num clac-clac-clec-clec, perto, longe e quase perto, quase perto é a distância do painel do carro ou da tela do computador, ele falou, e ainda disse, olha o marco na parede, enxerga a última linha e o numerozinho à direita? Isso é visão completa, justamente, você não precisa de óculos nem pra dirigir, astigmatismo é quase nada, viu?

um insight, um bem-estar por dentro, enfim uma recompensa, um café com chocolate, ânimo, adeus olhos zangados, vou encarar, me virar sem coisas nem ossos, abrir o jornal, doravante ler de olhos abertos, como se compreendendo tudo, sabendo que ando cem por cento munida de todos os pontos de vista, sem desilusão de óptica e sem armação.

o doutor prescreveu apenas lágrima artificial e completou com um

teus 👁️lh👁️s são de menina

Eu não uso óculos porque como cenoura, disse um coelho franzindo o nariz.

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